15 de julho de 2014

O QUE É SER DE ESQUERDA HOJE NO BRASIL?

O continente desconhecido da esquerda

Mover-se à esquerda hoje no Brasil significa desativar um sistema imunológico impermeável e todos os reflexos quase pavlovianos diante da alteridade, para se deixar afetar por movimentos de novo tipo e pela reinvenção dos existentes, dessa rede cuja determinação em resistir, transformar as relações de poderpor Bruno Cava

Em 20 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, muitos gritavam “sem partido” e “sem vandalismo” na avenida. Quando, no final da marcha, a aglomeração começou a aumentar na frente da prefeitura, as barreiras policiais se abateram sobre a manifestação, com chuva de balas de borracha, cortinas de gás lacrimogêneo, explosões e muita violência. Num espetáculo triste, a polícia reprimiu 1 milhão de pessoas indiscriminadamente. Aqueles que, momentos antes, entoavam o hino nacional e hostilizavam as bandeiras partidárias, agora recuavam unidos na resistência, gritando “fora Cabral” e “não vai ter Copa”. Manifestantes passaram a organizar linhas de defesa e levantar uma barricada para conter os caveirões.

Nos dias seguintes, sem qualquer pesquisa sobre o que ocorreu naquela noite de drástica plenitude, pipocaram artigos e comentários recheados de adjetivações definitivas. “Hipnose fascista”, disse um; “levante niilista”, outro; falou-se ainda que ela estaria infiltrada de “gangues mascaradas”, era manipulada pela “extrema direita” ou então seriam todos “coxinhas e seus estranhos amigos”. Meses depois, uma intelectual no pináculo acadêmico emitiria a sentença: “violência fascista” e não “revolucionária”,1 mobilizando o velho argumento conservador, que remonta a Edmund Burke, que alerta para o caráter instintivo, anárquico e perigoso da multidão. Essas foram avaliações da esquerda partidária sobre as jornadas de junho de 2013.

Diante de uma mobilização de norte a sul que tinha, entre outras pautas, a melhoria dos serviços públicos, a mobilidade urbana, maior transparência nas contas e gastos dos governos, a reforma das polícias, a democratização da mídia e os direitos LGBT. Diante da qualificação de grupos como o OcupaCâmara (Rio), o Tarifa Zero BH e o Movimento Passe Livre,2 que questionaram o grande negócio dos transportes; a campanha Cadê o Amarildo, que resgatou a favela, o racismo e a brutalidade policial da periferia da percepção;3 o Comitê dos Atingidos pela Copa (Copac) de Belo Horizonte, que conectou uma rede diversificada de comunidades e coletivos autônomos pelo direito à cidade;4 os advogados ativistas – e fotógrafos, e socorristas, e tantos profissionais anônimos que trabalharam de graça nas manifestações, para garantir os direitos que o Estado deveria proteger, mas estava violando.5 Sem falar na miríade de assembleias horizontais (como a Popular de Maranhão ou a do Largo, no Rio), “ocupas” de casas legislativas (como de Santa Maria – RS), plataformas comuns (como a Belém Livre), bem como uma cauda longa de mídias alternativas e um estilo de midiativismo via internet que, pela primeira vez, ganhou escala para disputar a comunicação com os peixes grandes.6 Isso é apenas a ponta do iceberg.

Diante desse, um dos maiores acontecimentos da história das lutas pela democracia no Brasil, a esquerda partidária se recolheu na própria zona de conforto. No lugar onde se aninhou, seja na situação, seja na oposição – nos dois casos num estado de identidade, ancorado na esfera representativa, tendo aprendido as regras, os pactos, os macetes, em suma, aprendeu a conservar o território. Quanta diferença em relação aos tempos, por exemplo, de uma prefeitura que, com Luiza Erundina (PT), em São Paulo, pensava uma política de tarifa zero para o transporte coletivo. Quando, com Olívio Dutra (PT), em Porto Alegre, pensava no orçamento participativo como o primeiro passo para deslacrar a caixa-preta dos negócios da cidade: obras, ônibus, coleta de lixo. Quando a legalização do aborto era pauta estrutural, já que afeta diretamente 50% da população e envolve nada menos do que o direito da mulher sobre si mesma. Tempos quando os militantes do partido não pareciam aspirantes a gestor público, na fila de espera por cargos de onde olharão por cima, com escopo gerencial, as contradições e caldeamentos da sociedade. Tempos quando os militantes de partido, com efeito, tomavam partido nos conflitos sociais (de classe, gênero, raça, sexualidade etc.) e atuavam imediatamente com as partes – em vez de desligar-se delas em nome das “grandes sínteses” da nova gestão, do desenvolvimento nacional, da obsessão pela governabilidade.

Mas ser de esquerda no Brasil hoje não é ser nostálgico. As jornadas de junho – e também os rolezinhos e fluxos de rua, e um protagonismo cada vez maior das favelas e periferias – mostraram que o novo mundo se impõe sem esperar, arrancando-nos da zona de conforto e forçando-nos a pensar. Depois de junho, por alguns meses, os governantes tiveram medo dos governados. Nos gabinetes, o sorriso largo e o bom humor deram lugar à intranquilidade. Isso é bom. Thomas Jefferson, que não era nenhum Black Bloc, já dizia que toda democracia precisa de uma rebeliãozinha de vez em quando, para regenerar as instituições.7

No projetado caminho da prosperidade embutida na ideia de uma “nova classe média”, a esquerda se chocou com um continente desconhecido, que finalmente chacoalhou os cálculos e certezas. Mas encarou mal a “descoberta”. Ora reagiu chamando todos de “índios”, tratando-os como inaptos de pensamento, política e estratégia e, portanto, ideologicamente vazios, desorganizados e facilmente manipuláveis pela direita. Ora lhes deu as costas, decepcionando-se por não encontrar as Índias como previsto nos mapas. Contudo, o fato é que o continente já está povoado de uma rede de multiplicidades em franca produção de pensamento, política e estratégia, de uma classe selvagem sem nome.8 Que pode, inclusive, reconhecer a relevância das (cada vez mais) rarefeitas respostas institucionais da esquerda para, conforme o caso, acionar seus mandatos e partidos como tática, sem ceder a autonomia.9

Mover-se à esquerda hoje no Brasil significa desativar um sistema imunológico impermeável e todos os reflexos quase pavlovianos diante da alteridade, para se deixar afetar por movimentos de novo tipo e pela reinvenção dos existentes, dessa rede cuja determinação em resistir, transformar as relações de poder e construir alternativas ficou provada em junho do ano passado. Significa optar pela inconveniência de sair do lugar e, na incerteza de uma história em aberto, redescobrir-se nas lutas de seu tempo.

Bruno Cava

Mestre em Filosofia do Direito

1 Marilena Chauí, em entrevista a Juvenal Savian Filho. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/08/pela-responsabilidade-intelectual-e-politica/ 

2 Eliana Judesnaider et al., Vinte centavos: a luta contra o aumento, Veneta, São Paulo, 2013.

3 Giuseppe Cocco, Bruno Cava e Eduardo Baker, “A luta pela paz”, Le Monde Diplomatique Brasil, jan. 2014.

4 Natacha Rena, Paula Berquó e Fernanda Chagas, “Biopolíticas espaciais gentrificadoras e as resistências estéticas biopotentes”. Disponível em: ; e Rudá Ricci e Patrick Arley, Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013, Letramento, Belo Horizonte, 2014. http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111404140911Biopol%C3%ADticas%20espaciais%20gentrificadoras%20e%20as%20resist%C3%AAncias%20est%C3%A9ticas%20biopotentes%20-%20Natacha%20Rena%20e%20Paula%20Berqu%C3%B3%20e%20Fernanda%20Chagas.pdf

5 Bruno Cava, A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013, Annablume, São Paulo, 2013.

6 Bernardo Gutiérrez, “Os protestos do Brasil dialogam com as revoltas globais”. Disponível em: ; e Fábio Malini e Henrique Antoun, A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais, Sulina, 2013. http://www.cartacapital.com.br/politica/os-protestos-do-brasil-dialogam-com-as-revoltas-globais-4371.html

7 Michael Hardt, “Thomas Jefferson ou a transição da democracia”. Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/110810120745Thomas%20Jefferson%20ou%20a%20transicao%20da%20democracia%20-%20Michael%20Hardt.pdf

8 Hugo Albuquerque, “A ascensão selvagem da classe sem nome”. http://descurvo.blogspot.com.br/2012/09/a-ascensao-selvagem-da-classe-sem-nome.htm

9 Pablo Ortellado, “Os protestos de junho entre o processo e o resultado”. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/os-protestos-de-junho-entre-o-processo-e-o-resultado-7745.html 

Morre escritora sul-africana antiapartheid Nadine Gordimer, ganhadora do Nobel



segunda-feira, 14 de julho de 2014 13:23 BRT

Escrito Por Ndundu Sithole



JOHANESBURGO (Reuters) - A escritora sul-africana Nadine Gordimer, ganhadora do Prêmio Nobel, morreu tranquilamente aos 90 anos no domingo à noite em sua casa de Johanesburgo, informou sua família nesta segunda-feira, Gordimer, uma intransigente defensora dos direitos humanos que se tornou uma das vozes mais poderosas contra a injustiça do apartheid, morreu na presença dos filhos, Hugo e Oriane, segundo um comunicado da família.
"Ela se preocupava profundamente com a África do Sul, sua cultura, seu povo e sua luta permanente para concretizar sua nova democracia", diz o comunicado.
Considerada por muitos a principal escritora da África do Sul, Nadine era conhecida como uma autora rígida, cujos romances e contos refletiam o drama da vida humana e das emoções em uma sociedade sacrificada por décadas de domínio de uma minoria branca.
Muitas de suas histórias enfocam temas como amor, ódio e amizade sob as pressões do sistema de segregação racial que terminou em 1994, quando Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente negro da África do Sul.
Integrante do partido de Mandela, o Congresso Nacional Africano (CNA), banido sob o apartheid, Nadine usou a escrita para lutar por décadas contra a desigualdade do domínio dos brancos, tornando-se malvista por segmentos do establishment.
Algumas de suas obras, como “"A World of Strangers" (Um Mundo de Estranhos) e "“Burger's Daughter" (A Filha de Burger), foram proibidas pelas autoridades do apartheid.
Nadine não escrevia apenas contra o regime do apartheid, mas também sobre a hipocrisia humana e o engodo, onde quer que o encontrasse.
"“Não posso simplesmente maldizer o apartheid quando há injustiça humana em toda a parte", disse ela à Reuters pouco antes de ganhar o Nobel.
Nos últimos anos, ela se tornara uma ativista do movimento HIV/Aids, em campanha por apoio e recursos por intermédio da Treatment Action Campaign, um grupo que pressiona o governo sul-africano para que conceda medicamentos gratuitos aos soropositivos.
Ela também não se absteve de criticar o CNA, comandado pelo presidente Jacob Zuma, ao expressar sua oposição a uma lei que limita a publicação de informações consideradas sensíveis pelas autoridades.

FAMA DE RADICAL

Filha de um judeu lituano fabricante de relógios, Nadine começou a escrever aos 9 anos.
A infância solitária desencadeou um intenso estudo das pessoas comuns ao seu redor, especialmente os clientes da loja de jóias do pai e os trabalhadores negros migrantes em sua terra natal, East Rand, nos arredores de Johanesburgo.
Sua revolta e suas inclinações liberais lhe renderam a fama de radical. Os censores do governo proibiram três de suas obras em 1960 e 1970, apesar de seu crescente prestígio no exterior e sua aceitação como uma das autoras mais importantes no idioma Inglês.
Apesar de Gordimer figurar na elite internacional, ela manteve um interesse apaixonado por aqueles que lutam na camada de baixo do mundo literário da África do Sul.
"É algo que me humilha ver alguém sentado no canto de um barraco que divide com outras 10 pessoas, tentando escrever na mais impossível de condições", disse ela.
Apesar do ódio ao apartheid, Gordimer permaneceu orgulhosa de sua origem na África do Sul e dizia que somente uma vez pensou em emigrar - para a vizinha Zâmbia. "Então, eu descobri a verdade: que na Zâmbia eu era considerada por amigos negros como uma europeia, uma estrangeira", disse ela. "É só aqui que eu posso ser o que eu sou: uma africana branca."

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