11 de julho de 2015

AFROPERSPECTIVIDADE: POR UMA FILOSOFIA QUE DESCOLONIZA


Afroperspectividade:

por uma filosofia que descoloniza


Renato Noguera_IV Ciclo Estudos PUC GO_02

Entrevista com o doutor em filosofia e professor da UFRRJ, Renato Noguera

Por Tomaz Amorim


Hoje iniciamos uma série de entrevistas com intelectuais e militantes da luta negra no Brasil. Nosso primeiro entrevistado é Renato Noguera, filósofo e professor da UFRRJ, que fala sobre o surgimento de uma tendência na filosofia brasileira chamada Afroperspectividade. Renato e outros pesquisadores tentam formular conceitos recorrendo às tradições indígena, africana e afro-brasileira. Se Nietzsche buscou inspiração nas figuras europeias clássicas de Apolo e Dionísio para suas formulações sobre a arte moderna, Renato Noguera e outros pesquisadores recorrem a figuras como a Mãe-de-santo e a conceitos como o de drible. 

O tripé referencial desta empreitada vem de Abdias do Nascimento, Viveiros de Castro e Molefi Asante. A proliferação conceitual de Deleuze dá o exemplo, segundo Renato, a ser superado. Nesta entrevista, falamos também sobre o conceito de epistemicídio (de Suely Carneiro), sobre as filosofias africanas – a anterior à grega e a contemporânea – e sobre como jovens negros em contextos violentos podem se descolonizar através da Filosofia. 

Renato ainda critica a ideia de mestiçagem e faz um balanço da aplicação das leis 10.639 e 11.645/08 que preveem o ensino de histórias e culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras em nossas escolas. Há um pensamento negro e crítico ganhando espaço nas universidades brasileiras. Renato Noguera e outros pesquisadores do Afroperspectividade são uma de suas frentes mais interessantes no campo filosófico.

“Numa sociedade racista que apresenta dados alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens negras e negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social. Mas, insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e antidogmática. Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da violência, uma Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso território cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar em semente no pluriverso filosófico afroperspectivista.”

RN: Renato Noguera

TA: Tomaz Amorim (entrevistador)

TA: Renato, você é professor de Filosofia na UFRRJ. Como foi sua trajetória acadêmica, da escola até a posição de professor universitário? Por que a Filosofia?

RN: Em resumo, estudei no Colégio Pedro II e lá, fazendo orientação vocacional aos 13 anos, recebi como “diagnóstico” Filosofia ou Ciências Sociais. Depois pensei em estudar Medicina, Direito ou Letras, mas tinha em mim algumas questões que eram nitidamente filosóficas. Depois de ter ficado na lista de espera para Direito na UERJ, escolhi Filosofia na UFRJ. Eu me lembro que desde a infância vivia me perguntando pelo sentido da vida, ficava comparando o infinito do céu com a finitude humana. Enfim, dos 18 aos 21 anos fiz o bacharelado em Filosofia, aos 22 anos conclui a licenciatura e entrei no Mestrado em Filosofia na UERJ, sob orientação do professor Gerd Bornheim. Depois de dois semestres decidi mudar, prestei outra prova de seleção e acabei indo para a UFSCar, onde cursei o mestrado de 1996 a 29 de fevereiro 2000 (data de defesa da dissertação). No mestrado pude estudar sob orientação do grande Bento Prado Jr. Na época, o mestrado durava quatro anos, toda minha turma usou igualmente o prazo, nós fazíamos as disciplinas em três ou quatro semestres e ficávamos pesquisando e escrevendo pelo mesmo período. Depois do mestrado, voltei a morar no Rio de Janeiro e entrei no doutorado em 2001 na UFRJ, onde o defendi em 31 de março de 2006 com apoio do mesmo orientador da minha monografia, o generoso Mário Guerreiro. Eu estudei a Filosofia de Schopenhauer e participei da fundação do Grupo de Trabalho (GT) Schopenhauer na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) em 2004. Na tese de doutorado, articulei as Filosofias de Platão, Schopenhauer e Deleuze para propor uma alternativa schopenhaueriana para uma formulação feita por Platão. A Filosofia de Deleuze trouxe a estratégia de criação de conceitos. Durante 11 anos fui professor da Educação Básica, trabalhei no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior, paralelamente, dei aula em várias escolas privadas, tais como a Escola Parque. Trabalhei na Universidade Estácio de Sá, fui professor substituto da UERJ, da UFRJ e da rede pública estadual fluminense. Entre 2005 e 2006 cheguei a ter 27 turmas por semana. No ano de 2008 fui aprovado em concurso público para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

TA: Da graduação ao doutorado você se dedicou ao estudo da obra de Schopenhauer, um dos mais importantes filósofos de língua alemã do século XIX. Hoje você é conhecido, principalmente, pelo esforço em produzir uma Filosofia a partir de temas e pensadores africanos. Nesta transição, você acha que houve um rompimento entre os temas ou há uma continuidade na sua produção?

RN: Não sei se foi um rompimento. Eu estudei Schopenhauer por bastante tempo, praticamente de 1991 até 2006, mas, paralelamente, tive outra formação. Tive o privilégio de ter uma formação familiar e política que levou-me para o ativismo negro desde cedo. Por isso, eu estudava, paralelamente, o pensamento africano. Eu sabia que nos anos 1990 e no início dos 2000 seria difícil colocar esse assunto no mundo acadêmico filosófico. O professor Mário Guerreiro me disse sabiamente: termine o doutorado e você poderá pesquisar isso. Foi o que fiz.

TA: Você reivindica uma origem africana à Filosofia, que teria vindo do Egito para a Grécia. Quais são os indícios históricos desta afirmação? Quem quiser se aprofundar nesta questão deve buscar quais referências?

RN: Eu trabalho com a noção de que a Filosofia é pluriversal; não faço coro com a leitura hegemônica de que filosofar seja universal e tenha sido uma invenção grega. Neste sentido, não reivindico que os africanos inventaram a Filosofia. Eu advogo que o Egito, desde 2780 antes da Era Comum, tem uma produção filosófica e possuía escolas de rekhet, termo que, segundo o egiptólogo e filósofo Theóphile Obenga, significa “Filosofia”. Não há dúvida de que Platão, Pitágoras e Tales de Mileto, dentre outros gregos, passaram algum tempo no Antigo Egito. Diversas fontes convergem para a tese de que Pitágoras (570-496 A.E.C) foi o primeiro a usar o termo “Filosofia” depois de retornar do Egito. Diógenes de Laércio e Cícero são fontes importantes dessa perspectiva bastante conhecida. Há um discurso crítico que atribuiria aos gregos uma espécie de plágio da Filosofia egípcia. Eu não defendo isso, tampouco a ausência de influência. É óbvio que todas as culturas são dinâmicas. Eu não defendo que os egípcios inventaram a Filosofia, o que eu digo é mais simples: os textos egípcios são filosóficos e mais antigos do que os gregos. Ou seja, os registros filosóficos africanos são anteriores aos ocidentais. Não estou preocupado com primazia, mas com a legitimidade filosófica africana na Antiguidade. Eu sou contra a recusa desse material por puro dogmatismo, por uma postura que, não encontro outra palavra, tem sido profundamente antifilosófica por parte de colegas com boa formação na área. Eu não digo que os africanos inventaram a Filosofia por dois motivos. Primeiro: amanhã ou depois podemos encontrar algum texto mais antigo do que os egípcios com cerca de mais de 2500 anos antes da Era Comum, isto é, de aproximadamente 4500 anos. Segundo: penso que é um falso problema apontar qual povo inventou a Filosofia, qual povo lavrou sua certidão de nascimento. Seria o mesmo que procurar o povo que inventou a Arquitetura. Penso que todos os povos tinham suas próprias construções. Faz mais sentido apontar as diferenças. Assim, o que soa estranho é reduzir toda diversidade a apenas uma escola. Eu tenho pensado desse modo. As nossas pesquisas são baseadas em diversas fontes, ainda pouco examinadas, que confirmam que os textos africanos são anteriores aos ocidentais. Os egípcios começaram a filosofar antes dos gregos. Além disso, há o fato de que o Egito antigo era uma sociedade negra, o que foi, conforme Martin Bernal e Cheikh Anta Diop, falsificado por conta do racismo antinegro que não aceitaria facilmente que uma sociedade muito avançada tecnologicamente naquele momento histórico pudesse ser negra. Ainda hoje encontramos representações brancas do Antigo Egito. Sem dúvida, minhas afirmações em torno da ideia de que existia uma produção filosófica anterior aos gregos recebe uma vasta série de objeções. O elenco é vasto. Mas para aprofundar o debate eu sempre indico o exame dos trabalhos de George James com Legado roubado (Stolen Legacy), passando pelas obras de Cheikh Diop, Theóphile Obenga, Molefi Asante, até A Filosofia antes dos gregos, de José Nunes Carreira.

TA: A Filosofia trabalhou durante muitos séculos com a ideia de universal. No século XX, principalmente, surgiram as Filosofias da diferença e uma produção teórica impulsionada por grupos historicamente oprimidos e por suas questões e reivindicações. É possível entender estas formulações específicas sob o pano de fundo do universal ou elas estariam justamente denunciando a falsidade deste universal?

RN: Penso que as Filosofias da diferença são muito importantes nessa denúncia, mas concordo com o filósofo porto-riquenho Maldonado-Torres que diz que: “os filósofos e os professores de Filosofia tendem a afirmar as suas raízes numa região espiritual invariavelmente descrita em termos geopolíticos: a Europa”. Apesar da enorme compreensão, percebo ainda uma perspectiva, por assim dizer, “conservadora”. O que não significa que eu não dialogue muito com essa abordagem, reconhecendo os seus limites.

TA: Qual a importância da Filosofia produzida hoje no continente africano? Qual sua relação com o pensamento africano na diáspora?

RN: Existem muitos expoentes na Filosofia africana contemporânea, posso citar alguns. Achille Mbembe tem uma obra muito interessante chamadaCrítica da razão negra, um belo trabalho de Filosofia política em que ele problematiza o conceito de “negro” e apresenta um risco trazido pelo neoliberalismo e pela crise da Europa como centro político mundial. Mbembe diz algo como “os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas”. O trabalho do filósofo sul-africano Mogobe Ramose questiona o conceito de universalidade, substituindo-o pelo de pluriversalidade. Ramose explica como os conflitos geopolíticos entre europeus e africanos foram responsáveis pela invisibilidade sistemática do pensamento filosófico africano. Ora, esse problema tem sido debatido no contexto da afrodiáspora de diversos modos. O filósofo afro-americano Charles Mills disse algo muito interessante, mais ou menos assim, “nas Ciências Humanas, a Filosofia é a área mais branca”. No Brasil, Sueli Carneiro trouxe a ideia de epistemicídio. É preciso citar outros nomes que têm pesquisado o assunto como Wanderson Flor Nascimento da Universidade de Brasília (UnB), Eduardo David Oliveira da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Emanoel Soares da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), além de estudantes de Programas de Pós-Graduação no Paraná como Roberto Jardim e Thiago Dantas, que lançou o livro Descolonização Curricular: A Filosofia Africana no Ensino Médio (2015). No Rio de Janeiro, um grupo de estudantes de pós-graduação, professores da educação básica e um professor da UERJ construíram um projeto que transformou-se no livroSambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba (2015), organizado por Wallace Lopes com participação de Marcelo Rangel, professor da Universidade Federal de Outro Preto (UFOP), Sylvia Arcuri, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira, Filipi Gradim, Guilherme Celestino e Marcelo Moraes, professor da UERJ. Esse grupo tem feito um belo trabalho filosofando através do samba e usando o repertório cultural negro, africano, afro-brasileiro, ameríndio e indígena.

TA: A tradição oral parece fundamental nas diversas culturas africanas. Quais os desafios em transportar esta tradição para a narrativa e Filosofia escritas?

RN: O pluriverso cultural africano é vasto. Conforme afirma Diop, existe algo em comum entre os povos africanos do mesmo modo que nas culturas ocidentais pode-se identificar alguns elementos razoavelmente constantes. Penso que existe muito desconhecimento sobre os povos africanos. O livroEtno-História do Império Mali de José Lampréia pode se juntar ao arsenal de trabalhos organizados pelo historiador africano Joseph Kizerbo e de tradicionalistas como Hampâte Bá para elucidar que existiam sociedades como o Império Mali, entre os séculos VIII e XVII. A historiografia africana aponta que no século XIV existiam 150 escolas e uma universidade na cidade de Tombuctu, com um vasto acervo em suas bibliotecas. Abdel Kader Haidara tem feito um belo trabalho tentando salvar a vasta documentação que grupos fundamentalistas querem destruir. Ora, faço esse comentário para explicar que existem registros escritos e orais no continente africano. Eu percebo que pouco se fala a respeito do material escrito dos séculos XIV, XV e XVI. Sem contar o vasto material egípcio de 2780 até 330 antes da Era Comum, conforme catalogado por Théophile Obenga. Afinal, mesmo diante das tentativas de falsificação histórica, o Egito Antigo não pode ser embranquecido diante de todas as evidências que Cheikh Anta Diop nos deixou em seus trabalhos. Faço essa digressão para mostrar que, além de material oral, existe muito material escrito que, no entanto, é pouquíssimo conhecido. Pois bem, em relação ao esforço de transpor o “texto” oral para o registro escrito, penso que a oralitura resolve esse aparente problema, transformando o que parecia um obstáculo intransponível numa equação solúvel, desde que os devidos protocolos sejam usados. Pio Zirimu, um incrível linguista ugandense, e uma dupla nascida no Quênia, o escritor e professor de literatura comparada Ngũgĩ Wa Thiong’o e a professora de arte Micere Mugo, explicam que a oralitura é a teoria da composição oral, um modo de catalogar o repertório de registros orais. Não se trata de oralidade, mas de “técnicas” do campo da linguística que criam um acervo oral. Ou seja, a tradição oral pode ser preservada através dessa abordagem. Vale a pena ler o artigo Oralidad y oratura de Juan José Ferrer a esse respeito para compreender melhor o tema. A oralitura é a alternativa para que o conhecimento filosófico antigo registrado oralmente possa ser acessível do mesmo modo que os registros escritos.

TA: Em 2003 foi implantada a lei 10.639, que prevê o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras nas escolas. Por que o estado brasileiro demorou tanto para incluir a história dos ancestrais de mais da metade da população brasileira nas escolas? Passados doze anos, quais foram os avanços da lei e de sua implantação? O que ainda falta? Quais as possibilidades de implantação da lei na disciplina de Filosofia?

RN: Esse tema é objeto de muitas pesquisas. A Lei 10.639/03 recebeu em 2008 o acréscimo da Lei 11.645/08 que inclui o ensino de história e culturas indígenas. A regulamentação da alteração do Artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tem pelo menos três documentos fundamentais: 1º) Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004; 2º) Orientação e Ação para Educação das Relações Étnico-Raciais de 2006; 3º) Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígenas de 2008. Existem muitos trabalhos que trazem um belo panorama a respeito do cenário de implementação dos conteúdos obrigatórios africanos, afro-brasileiros e indígenas no currículo do ensino fundamental e do ensino médio em todas as disciplinas. Um bom balanço tem sido feito pelos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabis) que integram oficialmente as Instituições Federais de Ensino (IFES), além de existirem também em diversas universidades privadas e públicas. É difícil discorrer sobre isso sem fazer uma monografia. De qualquer modo, existem avanços e resistências. No caso da disciplina Filosofia, posso fazer um resumo porque tenho dedicado parte de meu tempo de pesquisa em investigações a esse respeito, incluindo a pesquisa que coordeno com apoio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) intitulada Filosofando com sotaques africanos e indígenas, na primeira versão no período de julho de 2014 até junho de 2016. A maior dificuldade no campo da Filosofia está no desconhecimento da produção fora do circuito ocidental. Eu acredito que o livro Ensino de Filosofia e a lei 10.639 que foi publicado pela Pallas em parceria com a Biblioteca Nacional pode ajudar bastante a dirimir dúvidas. Penso que o primeiro passo é uma cuidadosa leitura da documentação que regulamenta o Artigo 26 A da LDB. O segundo passo: descolonização do pensamento, do currículo e das práticas educativas.

TA: Em uma entrevista recente à revista Ensaios Filosóficos você falou em “racismo epistemológico”. O que é isto e como vencê-lo?

RN: O racismo epistêmico ou epistemológico é uma das dimensões mais perniciosas da discriminação étnico-racial negativa. Em linhas gerais, significa a recusa em reconhecer que a produção de conhecimento de algumas pessoas seja válida por duas razões: 1º) Porque não são brancas; 2º) Porque as pesquisas e resultados da produção de conhecimento envolvem repertório e cânones que não são ocidentais. Penso que a disputa para derrotar, ainda que parcialmente, o racismo epistemológico está no esforço por diversificar as leituras. Combater a injustiça cognitiva começa por deixarmos de privilegiar os modelos epistemológicos ocidentais. E, por fim, realizar uma comparação dos modelos de conhecimento, do repertório, criando condições para a polirracionalidade. Minha base para romper com o racismo epistêmico está nas leituras do filósofo Dismas Masolo. É preciso analisar o objeto de conhecimento por ângulos diferentes, mas também por meio de modelos de racionalidade diversos. Isto certamente servirá para enriquecer nosso acervo cognitivo.

TA: A Universidade Federal do Maranhão acabou de anunciar a criação de um curso de graduação em “Estudos Africanos e Afro-Brasileiros”. NEABs, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, têm sido criados em diversas universidades em todo o Brasil. O surgimento destes espaços mostra o começo de uma mudança na presença negra nas universidades?

RN: Sem dúvida. Penso que temos um processo de franca expansão da produção e ocupação acadêmica. O que também pode ser percebido através das reações de grupos mais reacionários que não querem negociar o espaço público de produção de conhecimento.

TA: Os movimentos negros no Brasil têm reivindicado o conceito de genocídio para descrever o número alarmante de negras e negros que perdem a vida no Brasil por conta de ações diretas do estado ou por sua negligência (aborto mal realizado, assassinato pela polícia ou em guerra de facções, vício em drogas, má alimentação, ausência de serviços púbicos de saúde, etc.). A filósofa Sueli Carneiro desenvolve o conceito de epistemicídio, que seria o extermínio constante do conhecimento de povos não-brancos produzidos através da história e ainda hoje. Você acha que há uma relação entre estes dois tipos de extermínio?


RN: Sem dúvida. O que está em jogo não deixa de ser uma disputa pela versão única da História, da Filosofia, dos modelos e práticas políticas frente à diversidade de perspectivas. A denúncia feita por Sueli Carneiro é magistral, considero o seu trabalho uma das referências mais importantes da área no Brasil. Por exemplo, quando falamos em culinária as pesquisas apontam que a atividade de cozinhar é um território feminino. Em certa medida, na esfera privada no Brasil as mulheres cozinham mais do que os homens. No Brasil escravocrata, as mulheres negras escravizadas protagonizaram os serviços culinários. Mas a alta gastronomia e o papel de chef de cozinha parece ter um elenco majoritariamente branco e masculino. Tudo isso está relacionado ao epistemicídio, ao genocídio. A performance na área da gastronomia inclui a filiação étnico-racial. Os dados e o ranking de melhores chefs mostra que o gênero é masculino, a cor/raça é branca e o sotaque francês. Óbvio que não estou dizendo que homens brancos não podem ser chefs maravilhosos. O que o exemplo mostra é que o epistemicídio dificulta a “escuta” do discurso gastronômico das mulheres negras, já que os homens brancos são naturalmente mais empoderados na disputa.

TA: Você propõe uma Filosofia afroperspectivista. O que é isto? Quais as origens teóricas e políticas deste conceito? Existem outros pensadores hoje no Brasil e no mundo dedicados ao seu desenvolvimento? Quais são até agora seus principais trabalhos?

RN: Por Filosofia afroperspectivista ou Afroperspectividade defino uma linha ou abordagem filosófica pluralista que reconhece a existência de várias perspectivas, sua base é demarcada por repertórios africanos, afrodiaspóricos, indígenas e ameríndios. O que denominamos de Filosofia afroperspectivista é uma maneira de abordar as questões que passa por três referências: 1ª) Afrocentricidade; 2ª) Perspectivismo ameríndio; 3ª) Quilombismo. Alguns aspectos da formulação intelectual feita por Molefi Asante articuladas com certas questões suscitadas pela etnologia amazônica de Eduardo Viveiros de Castro com a formulação política do quilombismo de Abdias do Nascimento são as fontes para a Filosofia afroperspectivista. Vou repetir o que escrevi no capítulo Sambando para não sambar: afroperspectivas filosóficas sobra a musicidade do samba e a origem da Filosofia. A Filosofia afroperspectivista reúne alguns dos seguintes elementos: 

Afroperspectividade define a Filosofia como uma coreografia do pensamento. 

A Filosofia afroperspectivista define o pensamento como movimento de ideias corporificadas, porque só é possível pensar através do corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografia como elementos que produzem conceitos e argumentam. 

Os conceitos afroperspectivistas são construídos a partir de movimentos de coreografia de personagens conceituais melanodérmicos. Neste sentido, os conceitos são escritos com os pés, com as mãos e com cabeça ao mesmo tempo. 

A Filosofia afroperspectivista define a comunidade/sociedade nos termos da cosmopolítica bantu: comunidade é formada pelas pessoas que estão presentes (vivas), pelas que estão para nascer (gerações futuras/futuridade) e pelas que já morreram (ancestrais/ancestralidade). 

A Filosofia afroperspectivista é policêntrica, percebe, identifica e defende a existência de várias centricidades e de muitas perspectivas. 

A Filosofia afroperspectivista não toma o prefixo “afro” somente como uma qualidade continental; estamos diante de um quesito existencial, político, estético e que nada tem de essencialista ou metafísico. 

A Filosofia afroperspectivista usa a roda como método, um modelo de inspiração das rodas de samba, candomblé, jongo e capoeira que serve para colocar as mais variadas perspectivas na roda antes de uma alternativa ser alcançada. A roda é uma metodologia afroperspectivista. 

Afroperspectividade é devedora da Filosofia ubuntu de Mogobe Ramose. 

Afroperspectividade define competição como cooperação, isto é, competir [significa petere (esforçar-se, buscar) cum (juntos)], localizar alternativas que são as melhores num dado contexto, mas, não são únicas, tampouco permanentes e devem atender toda a comunidade. 

Afroperspectividade é devedora do Nguzo Saba formulado por Maulana Karenga, isto é, se baseia nos sete princípios éticos que ajudam a organizar e orientar a vida. A saber: Umoja (unidade): empenhar-se pela comunidade; Kujichagulia (autodeterminação): definir a nós mesmos e falar por nós; Ujima (trabalho e responsabilidade coletivos): construir e unir a comunidade, perceber como nossos os problemas dos outros e resolvê-los em conjunto; Ujamaa (economia cooperativa): interdependência financeira, recursos compartilhados; Nia (propósito): transformar em vocação coletiva a construção e o desenvolvimento da comunidade de modo harmônico; Kuumba (criatividade): trabalhar para que a comunidade se torne mais bela do que quando foi herdada; Irani (fé): acreditar em nossas(os) mestres. 

Afroperspectividade é devedora das reflexões e inflexões filosóficas de Sobonfu Somé, definindo o amor como um projeto espiritual e comunitário que serve para manter a sanidade individual e deve contar com o apoio de uma comunidade para ser preservado. 

Afroperspectividade define o tempo dentro do itan [verso]iorubá que diz: “Bara matou um pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje”. O tempo não é evolutivo, tampouco se contrai ou pode ser tomado como um círculo ou uma linha reta; mas, de modo simples, diz que o passado é definido pelo presente e o futuro é um conjunto de encruzilhadas, isto é, destinos (odu). 

Afroperspectividade permanece em aberto, sempre apta a incluir perspectivas que usem o conceito de odara como crivo de validade de um argumento, entendendo odara como bom, na língua ioruba, uma espécie de bálsamo de revitalização existencial. 

Em relação às pessoas que filosofam com algum sotaque afroperspectivista, posso dizer que estão reunidas em Sambo, logo penso. Eu não quero falar por ninguém, nem sou representante especial dessa abordagem filosófica, penso que sou, apenas, academicamente mais antigo do que o resto do grupo. No livro Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba(2015) organizado por Wallace Lopes, numa coordenação conjunta que fiz com Sylvia Arcuri e Marcelo Moraes, estão reunidas as pessoas que fazem esse exercício afroperspectivista de modo formal ou informal, Marcelo Rangel, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira, Filipi Gradim, Guilherme Celestino. No projeto Filosofando com sotaques africanos e indígenas, tenho algumas parcerias: o Prof. Rogério Seixas da Universidade de Barra Mansa, Filipe Ceppas da UFRJ, Wanderson Nascimento da UFBA e Wanderely Silva da UFRRJ, estes são colegas que mesmo não se professando afroperspectivamente apoiam e são pesquisadores associados do projeto. Em relação às principais obras: penso que estão porvir, mas Ensino de Filosofia e a Lei 10. 639 (2014)foi o primeiro livro em que confessei esse desejo intelectual de filosofar com sotaques africanos, indígenas, performances femininas, sambando, jogando bola, com carimbó e com um repertório suburbano, enfim, lançando mão das minhas referências culturais.

TA: Qual o papel das mulheres na produção negra de conhecimento no cenário brasileiro? A figura da negra ainda se resume ao papel tradicional de mãe ou a Filosofia afroperspectivista aponta outros espaços possíveis para ela?

RN: Grande interrogação. Penso que o lugar das mulheres só pode ser de protagonismo. Atualmente tenho orientado mulheres em cursos de pós-graduação e buscado apoiar suas iniciativas. Na Filosofia afroperspectivista, estamos cada vez mais pensando em amplificar e fazer circular com mais intensidade as performances femininas. Por exemplo, em um artigo sobre a genealogia do drible mencionei personagens conceituais melanodérmicas da Filosofia afroperspectivista. Nós estamos investindo em estudos a respeito da personagem da Pomba-Gira, por exemplo. Além disso, a pensadora burquinense Sobonfu Somé é uma das nossas maiores referências quando se trata de falar de relacionamentos afetivos e conjugalidades.

TA: A mãe de santo, o jongueiro, o vagabundo, orixás, ubuntu, denegrir, vadiagem, drible, mandinga, enegrecimento, roda, cabeça feita, corpo fechado, estas são algumas imagens e figuras ligadas ao universo negro que você transforma em conceitos filosóficos. No conceito de drible, por exemplo, você faz um interessante resgate histórico do drible no futebol e busca aplicá-lo à tradição acadêmica europeia, exigindo que o pensamento pense também com o corpo. Traduzir tipos históricos e imagens tradicionais em conceitos filosóficos é o procedimento principal da Filosofia afroperspectivista?

RN: É um dos procedimentos. Um dos modos de atuar é trazer o nosso repertório cultural. A maioria das pessoas que usam a afroperspectividade tem sólida formação nas rodas de samba, nos terreiros de candomblé e umbanda, pajelança, xamanismo, nas rodas de capoeira, algumas são jogadoras de futebol e/ou estudiosas de esquemas táticos. Nesse sentido, se o filósofo alemão Adorno usou Ulisses para fazer uma leitura da Modernidade, se Nietzsche falou de Apolo e Dioniso, nós usamos outras personagens: Exu, Pomba-Gira, Zé Malandro, Zumbi dos Palmares, Ogum, Oxóssi, Tupi, Iara, dentre outras.

TA: O filósofo francês Gilles Deleuze é uma referência importante nos seus escritos. É possível trabalhar com escritores europeus em uma Filosofia afroperspectivista? Há limites e dificuldades nesta relação?


RN: A resposta é sim para os dois casos. Ou seja, apesar de ser viável trabalhar com autores europeus, existem limites. Isto está explícito em uma defesa que o próprio Deleuze faz ao lado do psicanalista Félix Guattari em O que é Filosofia?: “Se a Filosofia tem uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos impérios ou dos estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de ‘amigos’, a comunidade dos homens livres enquanto rivais (cidadãos)”. Por isso, ainda que Deleuze seja muito importante para os meus escritos, reconheço limites sérios. Como eu digo sempre, na esteira do filósofo Maldonado-Torres, os filósofos europeus têm essa mania colonial. Sem dúvida, Deleuze é um dos filósofos que mais tem nos ajudado em nossas insurreições. Mas como desejamos criar aldeias e quilombos filosóficos, Deleuze só ajuda a destruir os velhos castelos ocidentais da Filosofia. Para construir a aldeia quilombista precisamos de pessoas que filosofam com samba.

TA: Qual o papel da mestiçagem, ideia fundamental na história da formação racial brasileira, no seu pensamento?

RN: Eu não reivindico a categoria de mestiçagem em nenhum momento. Não se trata de uma dificuldade, mas de um termo muito equívoco, uma ideia que traz mais dificuldades e confusões do que alternativas políticas. Eu identifico um grave problema. O termo “raça” pode ser usado com vários sentidos, destaco dois: sinônimo de espécie ou alusão ao caráter social e histórico que diferencia grupos humanos pelo fenótipo. Ora, os sentidos são trocados e como diz o ditado “não se deve confundir alhos com bugalhos”. Tecnicamente, uma pessoa com mãe austríaca branca e pai norueguês branco é tão mestiça quanto alguém que tem um pai nigeriano da etnia iorubá com uma mãe sueca de pele alva. Minha leitura percebe que o conceito mestiço só faria pleno sentido em casos de centauros, uma mistura de humanos com cavalos, ou ainda, se um ser extraterrestre procriasse com uma pessoa da nossa espécie. Dessa união (extraterrestre com terrestre) nasceria um ser mestiço. Minha experiência política e meus investimentos intelectuais trazem um pensamento diferente desse. Nós somos da mesma raça (no sentido de espécie biológica), mas isso não quer dizer que não exista raça num sentido social e histórico, ou seja, populações que podem ser diferenciadas por características étnico-raciais, isto é, pelo fenótipo. Mas a existência de mestiços pressuporia diferenças de natureza entre as “raças”, o que não é o caso. Eu exemplifico, os jogadores de futebol Daniel Alves e Kaká são “igualmente” mestiços. Porque provavelmente ambos têm pessoas brancas, negras (pretas e pardas) e indígenas em suas ancestralidades. Mas foi Daniel Alves que reclamou dos xingamentos de torcidas que além de jogar bananas, o chamaram de macaco diversas vezes. Conforme minhas pesquisas superficiais, Kaká nunca foi chamado de “macaco” quando jogava na Europa. Ora, Kaká é branco e Daniel Alves é pardo, isto é, negro. (O sistema classificatório étnico-racial brasileiro é bem simples: o IBGE informa cinco categorias de cor/raça: amarela, branca, indígena, parda e preta. É importante notar que a categoria negra não é sinônimo de preta, mas a soma desta com “parda”. Ou seja, pardos + pretos = negros). Por isso, Neymar viveu alguns episódios de discriminação racial em campo, algo impensado para Zico ou Kaká na mesma Europa. Penso que a ideia de mestiçagem cria mais dificuldades e confusões do que efetivas alternativas ao racismo e para a compreensão da sociedade brasileira. A suposição da existência da “mestiçagem” tem sido munição para as teorias puristas. Afinal, para haver mestiços é preciso que existam puros. Supor a mestiçagem parece uma crítica de tom antirracista, mas acaba por revitalizar o racismo que “gostaria” de combater. A ideia de pureza fez e continua fazendo muitos estragos políticos, penso que devemos riscar a ideia de “mestiçagem” dos nossos dicionários político e intelectual, levando a ideia de “pureza” junto. Afinal, não existem puros, tampouco impuros ou misturados. Concordo com Carlos Moore, só existem fenótipos. Por isso, a mestiçagem não faz parte do meu trabalho. Não acredito e nem vejo como a “mestiçagem” poderia ajudar a resolver qualquer tensão racial.

TA: Por fim, Renato. Em um contexto de opressão e violência, como é o de muitos jovens negras e negros no Brasil, por que eles deveriam estudar Filosofia ?

RN: A Filosofia pode ser um exercício de descolonização. Mas também pode ser de colonização e recolonização. Nós defendemos uma Filosofia que descoloniza, uma Filosofia que declare independência e autonomia sem dogmas. Numa sociedade racista que apresenta dados alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens negras e negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social. Mas, insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e antidogmática. Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da violência, uma Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso território cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar em semente no pluriverso filosófico afroperspectivista.
TA: Muito obrigado pela entrevista, Renato.

Fonte: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2015/07/11/afroperspectividade-por-uma-filosofia-que-descoloniza/?utm_content=bufferb5b84&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer

SUBPRIME, O QUE É E PRA QUE SERVE? OS NÚMEROS INDICAM QUE JÁ CHEGOU A 10X O PIB DA TERRA! ENTENDA MELHOR.


ESTIMA-SE QUE DEVE-SE APROXIMADAMENTE 10X O PIB DA TERRA EM SUMPRIME!


A Crise do subprime é uma crise financeira desencadeada em 2006, a partir da quebra de instituições de crédito dosEstados Unidos, que concediam empréstimos hipotecários de alto risco (em inglês: subprime loan ou subprime mortgage), arrastando vários bancos para uma situação de insolvência e repercutindo fortemente sobre as bolsas de valores de todo o mundo. A crise foi revelada ao público a partir de Fevereiro de 2007, como uma crise financeira, no coração do sistema Uma crise grave, portanto - e segundo muitos economistas, a mais grave desde 1929, com possibilidades, portanto, de transformar-se em crise sistêmica,1 entendida como uma interrupção da cadeia de pagamentos da economia global - que tenderia a atingir generalizadamente todos os setores econômicos. Um prenúncio, portanto, da crise econômica de 2008.23.


"O PIB global atual é da ordem de 72,6 trilhões de dólares, mas somente em Derivativos, no mercado global, os números chegam perto de 1 quatrilhão de dólares, ou seja, mais de 10 vezes o PIB global … até quando conseguirão sustentar essas “apostas” artificialmente sem colapsar?!"


As famílias americanas já vinham se endividando ao longo dos anos 1990, a partir de 1995 o mercado imobiliário voltou se expandir, assim como o endividamento - crédito ao consumidor e hipotecas. Com a crise de 2000-2001, do mercado de ações, o mercado imobiliário ganhou estímulos e se expandiu mais vigorosamente. As famílias, já endividadas, elevaram a contratação de empréstimos, fazendo novas hipotecas e adquirindo novas linhas de crédito 4 5 . A partir de 2003, com a intensificação da valorização dos imóveis e esgotamento dos clientes tradicionais, o crédito foi facilitado para as famílias e indivíduos sem histórico de crédito ou com histórico ruim, sem emprego e sem renda - o subprime.

Os subprimes incluíam desde empréstimos hipotecários até cartões de crédito e aluguel de carros, e eram concedidos, nos Estados Unidos, a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito - os chamados clientes ninja(do acrônimo, em inglês, no income, no job, no assets: sem renda, sem emprego, sem patrimônio). Essas dívidas só eram honradas, mediante sucessivas "rolagens", o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta.

Essa valorização contínua dos imóveis permitia aos mutuários obter novos empréstimos, sempre maiores, para liquidar os anteriores, em atraso - dando o mesmo imóvel como garantia. As taxas de juros eram pós-fixadas - isto é, determinadas no momento do pagamento das dívidas. Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a consequente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa.



A queda nos preços de imóveis, a partir de 2006, arrastou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo fortemente sobre as bolsas de valores de todo o mundo.

Como os empréstimos subprime eram dificilmente liquidáveis, isso é, não geravam nenhum fluxo de caixa para os bancos que os concediam, esses bancos arquitetaram uma estratégia de securitização desses créditos. Para diluir o risco dessas operações duvidosas os bancos americanos credores juntaram-nas aos milhares, e transformaram a massa daí resultante em derivativos negociáveis no mercado financeiro internacional, cujo valor era cinco vezes superior ao das dívidas originais.

Assim, criaram-se títulos negociáveis cujo lastro eram esses créditos "podres". Foi a venda e compra, em enormes quantidades, desses títulos lastreados em hipotecassubprime o que provocou o alastramento da crise, de origem estadunidense, para os principais bancos do mundo.

Por uma razão que se desconhece (embora possa estar ligada a um lobby ou pressão de alguns congressistas americanos para o lastreamento desses títulos, por haver interesse da parte deles pelos rendimentos do subprime, o que sugere uma ligação com alguns banqueiros), e que hoje, após o estouro, ainda deixa pasmos muitos analistas, tais papéis, lastreados em quase nada, obtiveram o aval das agências internacionais de classificação de risco - de renome até então inquestionável -, que deram a eles a sua chancela máxima - AAA - normalmente dada a títulos tão sólidos quanto os do Tesouro dos EUA, tornando-os muito mais confiáveis do que osbônus do governo brasileiro, por exemplo. Com essa benevolente classificação de risco, tanto os investidores, como os fundos de investimento e os bancos passaram a disputar a aquisição desses títulos, no mundo todo, e esses títulos passaram a servir como garantia para a tomada de novos empréstimos bilionários, alavancados na base de 20 para 1.

A partir do 18 de Julho de 2007, a crise do crédito hipotecário provocou uma crise de confiança geral no sistema financeiro e falta de liquidez bancária, ou seja, falta de dinheiro disponível para saque imediato pelos correntistas dos bancos.

Mesmo os bancos que não trabalhavam com os chamados "créditos podres" foram atingidos. O banco britânico Northern Rock, por exemplo, não tinha hipoteca-lixo em seus livros, mas adotava uma estratégia arriscada - tomar dinheiro emprestado a curto prazo (a cada três meses) às instituições financeiras, para emprestá-lo a longo prazo (em média, vinte anos), aos compradores de imóveis. Repentinamente, as instituições financeiras deixaram de emprestar dinheiro ao Northern Rock, que, assim, no início de 2007, acabou por se tornar o primeiro banco britânico a sofrer intervenção governamental, desde 1860.6



Na sequência, temendo que a crise tocasse a esfera da economia real, os Bancos Centrais foram conduzidos a injetar liquidez no mercado interbancário, para evitar oefeito dominó, com a quebra de outros bancos, em cadeia, e que a crise se ampliasse em escala mundial.

Segue o Rankin dos endividados:





Os 6 grandes bancos americanos estão perigosamente mergulhados e expostos pelos Derivativos, afinal seus ativos somados são de cerca de 9,8 trilhões de dólares … mas juntos eles somam 278 trilhões de dólares desses títulos, os quais podem ser, em grande parte, compostos por títulos “podres”. São verdadeiras “bombas-relógio” em alto risco de “explosão” e que podem causar grandes danos globais. Para perceber isso, veja que o banco alemão Deutsche Bank possui 75 trilhões de dólares em Derivativos e ainda assim falhou no teste de stress contra crises financeiras feito em março de 2015. Veja abaixo e compare os ativos dos bancos com os riscos dos Derivativos:

JPMorgan Chase
Ativo Total: $ 2.573.126.000.000 (cerca de 2,6 trilhões de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 63.600.246.000.000 (mais de 63 trilhões de dólares)

Citibank
Ativo Total: $ 1.842.530.000.000 (mais de 1,8 trilhões de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 59.951.603.000.000 (mais de 59 trilhões de dólares)

Goldman Sachs
Total de ativos: 856.301.000.000 $ (menos de um trilhão de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 57.312.558.000.000 (mais de 57 trilhões de dólares)

Bank Of America
Ativo Total: $ 2.106.796.000.000 (um pouco mais de 2,1 trilhões de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 54.224.084.000.000 (mais de 54 trilhões de dólares)

Morgan Stanley
Total de ativos: 801.382.000 mil dólares (menos de um trilhão de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 38.546.879.000.000 (mais de 38 trilhões de dólares)

Wells Fargo
Ativo Total: $ 1.687.155.000.000 (cerca de 1,7 trilhões de dólares)
A exposição total a Derivativos: $ 5.302.422.000.000 (mais de 5 trilhões de dólares)

Em comparação com o resto deles, o Wells Fargo parece extremamente prudente e racional. Mas é claro que isso não é totalmente verdade, afinal o Wells Fargo está sendo muito imprudente, mas os outros estão sendo tão absurdamente mais imprudentes e que fazem o Wells Fargo parecer um “santo” quando comparado aos demais.

O PIB global atual é da ordem de 72,6 trilhões de dólares, mas somente em Derivativos, no mercado global, os números chegam perto de 1 quatrilhão de dólares, ou seja, mais de 10 vezes o PIB global … até quando conseguirão sustentar essas “apostas” artificialmente sem colapsar?!


A REPERCUSSÃO NO BRASIL

Logo após a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos ter rejeitado a proposta governamental de socorro ao setor financeiro, em 29 de setembro, a Bolsa de Valores de São Paulo, a terceira maior do mundo em valor de mercado,20 chegou a cair 10,16% (a 45.622,61 pontos) e teve suas operações interrompidas.

Mas, de modo geral, os economistas acreditam que seja muito cedo para determinar o impacto da crise, a longo prazo, no Brasil. Apenas uma minoria, a exemplo deStephen Kanitz, pensa que o país está imune - ou quase imune - à crise.21 A maioria dos economistas é mais cautelosa, embora acredite que a posição brasileira - assim como a da Índia, da China e a de alguns outros emergentes - seja menos vulnerável do que a dos países ricos. O Brasil tem obtido sucessivos superávits fiscais e o governo tem sido cauteloso, mantendo altas taxas de juros e baixas taxas de inflação. Assim, embora a crise não possa ser subestimada, até o momento não há previsões de grandes baques na economia brasileira.

Todavia, as exportações - que dependem de fontes externas de financiamento - tendem a sofrer imediatamente os efeitos da redução da oferta internacional de crédito. Uma eventual diminuição das exportações tende a repercutir negativamente também sobre o setor produtivo, tocando enfim a chamada economia real, isto é, a economia da produção de bens e serviços, ou a esfera da "riqueza real", definida por Adam Smith não como acúmulo de metais preciosos (conforme defendiam osmercantilistas), mas como a "produção anual do trabalho e da terra da sociedade",22 e que corresponde à esfera do Güterwelt schumpeteriano,23 ou ao que Krugmandefine simplesmente como "a economia dos empregos, dos salários e da produção".24 Além disso, a queda da demanda nos Estados Unidos afeta as exportações - não só no Brasil, mas também em outros países, particularmente na China, que, sendo grande exportadora para os EUA, tende a experimentar uma desaceleração no seu crescimento. De imediato, esperava-se que crescimento do PIB chinês caísse cerca de 1%..25 Mas essa queda foi bem maior e pode chegar a 4%, embora a taxa ainda se mantenha bastante alta (mais de 6% ao ano). O governo chinês fixou uma meta de crescimento de 8% a.a. Mas, no primeiro trimestre de 2009, a economia chinesa sofreu uma queda brusca nas suas exportações e o PIB cresceu à menor taxa dos últimos dez 10 anos: 6,1% em relação ao primeiro trimestre de 2008. No trimestre anterior, o país crescera 6,8%, em comparação com o mesmo período, no ano anterior. Estes números indicam que será difícil cumprir a meta de crescimento de 8%, definida pelo governo.26

Desde 2006, a China tem crescido a aproximadamente 10% ao ano. Em 2008, cresceu de 9,8% 27 a 11,4%.28 Se conseguir chegar a 8%, em 2009, será uma vitória. Mas, por ora, o plano econômico do governo chinês, de USD 584 bilhões, não teve êxito em conter a queda no crescimento.

Na economia brasileira, espera-se, igualmente, uma desaceleração significativa do crescimento do PIB - ou seja, um crescimento igual a zero ou muito próximo de zero. A magnitude dessa desaceleração deve depender, em grande medida, do que acontecer à economia chinesa - e isso vale para todos os países que exportam para a China. Enquanto o crescimento chinês se mantiver alto, países que exportam para a China tenderão a sofrer menos com os efeitos da crise. No caso do Brasil, isto é particularmente verdadeiro sobretudo com relação aos alimentos (grãos e cereais, soja e óleos comestíveis), dos quais o Brasil é um grande produtor e a China é um grande importador.29 30

Muitos observadores afirmam que os Estados Unidos estão mergulhados na pior crise desde 1929. Segundo outros, na prática, a economia americana já está emrecessão - embora não se saiba ao certo quão profunda será ou quanto tempo poderá durar .

De acordo com o brasilianista Thomas Skidmore, o sistema financeiro no Brasil está "muito mais sólido que nos EUA (…) O Brasil teve um período de boomextremamente bem sucedido com as exportações para a Ásia e a Europa e por isso há relativamente pouca razão para se preocupar com a crise de Wall Street."Segundo Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil: "A economia brasileira vai desaquecer no próximo ano, mas de uma maneira menos grave do que em outros países, que já estão enfrentando a recessão.

George Soros considera que embora uma recessão no mundo desenvolvido seja mais ou menos inevitável, a China, a Índia, e alguns países produtores de petróleo estão numa vigorosa contratendência, o que tornaria menos provável que a atual crise financeira internacional venha a causar uma recessão global, devendo isso sim, diz Soros, provocar uma realinhamento radical da economia mundial, com um relativo declínio dos Estados Unidos, e com a ascensão da China e de outros países do mundo subdesenvolvido. Segundo Soros o maior risco agora reside nas tensões políticas resultantes, inclusive no protecionismo norte-americano que, essas sim, poderiam lançar o mundo numa recessão global, ou algo pior.31 32 Este quadro - pior que uma recessão global - poderia ser uma depressão econômica mundial, advinda de uma dramática deterioração do quadro atual de crise sistêmica.


REFREÊNCIAS:


BRESSER PEREIRA, L.C. Dominação financeira e sua crise no quadro do capitalismo do conhecimento e do estado democrático social. Revista Estudos Avançados, 22 (64), 2008: 195-205.
Instituto europeu vê agravamento da crise sistêmica LEAP/2020 : Annonce Spéciale Crise Systémique Globale Septembre 2008;

ROSA, E. O Papel Macroeconômico das Famílias e a Geração de Fragilidade Financeira[1]
http://www.akb.org.br/upload/130820121548511055_Everton%20S.%20T.%20Rosa.pdfROSA, E. 

As Famílias a Abordagem Minskyana: aspectos e desdobramentos do endividamento das famílias americanas "Economia mundial em crise – Onde estamos agora?" por Mick Brooks", 25.01.2008 CNN

Globo On Line Pânico nos mercados

Lehman fecha acordo para vender unidades ao Barclays, diz jornal britânico

AIG tem um dia para se salvar, diz governador de NY

Fed seems close to helping A.I.G.

Carta Capital: O novo socialismo

BBC Brasil: "Entenda a operação de resgate da seguradora AIG"

Itaú e Unibanco podem ficar com AIG e Merrill no país

Câmara dos EUA rejeita pacote; Bovespa chega a interromper atividade

BC Brasil: Plano 'não salvará economia', dizem jornais dos EUA

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